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Poesia

Por que Mafuá do Malungo

Uma nota de gratidão e explicativa dessa coluna

Mafuá de Malungo

Mafuá de MalungoContos, crônicas e memórias de Elton Becker.

17/12/2021 19h14
Por: Redação

Parece estranho, mas até nesse tempo eu leio poesia. E, adaptando Affonso Romano de Sant’Anna, às vezes, penso: como é que um sujeito na minha idade, já chegando aos 50, senta-se para ler uns versos e… se emociona? Ainda hoje (re)leio João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Vinícius de Moraes, Adélia Prado e sempre Manuel Bandeira. Em poesia, Bandeira é um dos meus mestres. O maior, talvez.

Contudo nem sempre foi assim. Até meados da década de 1990, o poeta, crítico literário e professor de literatura Manuel Bandeira (1886-1968) era para mim apenas, e sublinho apenas, o autor do poema “Os Sapos”, o qual me chamava atenção por dois motivos: primeiro, porque fora lido debaixo de vaias pelo também poeta Ronald de Carvalho (1893-1935) no segundo dia da Semana de Arte Moderna em 15 de fevereiro de 1922, acontecimento que logo completará 100 anos.

Nada mais cativaria tanto o espírito de um adolescente que queria ser “diferentão”; do contrário, não seria adolescente, inclusive. O segundo motivo é um pouco prosaico, antes, é ingênuo e bem mais adolescente. Ocorre que, para nós, alunos da turma do Segundo Ano de 1993 do Colégio Diocesano de Conquista, “Os Sapos” nos fora apresentado pela professora Sandra Marjorie Luz Lourenço.

“Formosa, qual se a própria mão divina / Lhe alinhara o contorno e a forma rara / … Astro gentil, estrela peregrina”. Explico: é que Sandra era para nós a própria encarnação desse belo soneto, “Formosa”, de Maciel Monteiro, o Barão de Itamaracá, onde se combinam o rigor com a leveza mais o belo e o bonito com a simplicidade.

E tanto assim que eu, Abdias Silveira, Wesley Andrade e Vinicius Pedreira, três mosqueteiros de araque e tão inseparáveis quanto os personagens Athos, Porthos e Aramis do famoso romance, inventávamos as coisas mais disparatadas para sermos os mais participativos e interessados em sua classe. Coisas tão absurdas quanto ao título de “Os Três Mosqueteiros”, que diz tratar-se de um trio de protagonistas quando, na verdade, os heróis são em número de quatro.

Mas, além de formosa, Sandra era também encantada. E, tal como a “Uma Professora Muito Maluquinha”, de Ziraldo, na nossa imaginação, ela voava pela sala, tinha estrelas no lugar dos olhos, voz e jeito de sereia, vento o tempo todo nos cabelos e seu sorriso era solto como os passarinhos. Ela era uma professora inimaginável — mesmo na nossa imaginação.

Eu acho que foi o escritor italiano Ítalo Calvino quem escreveu que a juventude comunica ao ato de ler um sabor e uma importância particulares, como a qualquer outra experiência. E que essa leitura pode até ser pouco profícua pela impaciência e distração do leitor ou ainda pela sua própria inexperiência da vida. 

Todavia, quando se tem uma professora que nos oferece alguma surpresa em relação à imagem que tínhamos sobre determinado autor ou livro, isso faz toda diferença.

Sou muito grato a Sandra porque foi ela quem primeiro me fez enxergar que só há uma literatura: a universal. Sem que haja distinções de língua e caráter nacional e que, parafraseando Mário de Andrade, todos os gêneros são permitidos menos o gênero maçante, enfadonho e entediante. Porque há coisas que somente a literatura, com seus meios bem específicos, pode nos oferecer, lição, aliás, partilhada por gente como Ítalo Calvino. Veja lá se não é esse um dos sentidos das “Seis propostas para o próximo milênio” de Calvino.

Demais, foi Sandra quem nos fez notar mais amiúde, por exemplo, a poesia de Fernando Pessoa(s) e a prosa de Eça de Queirós. Mas, se por um lado, eu não largasse o Álvaro de Campos, heterônimo do primeiro, nem “Os Maias”, o romance capital do segundo, eu lá queria saber “Lisbon revisited” ou da casa de “O Ramalhete”? Não, eu queria mesmo era ir-me embora pra Pasárgada. Quem sabe se lá eu não fosse amigo ou até um contraparente não do rei, mas do poeta?

Afinal, não é Bandeira quem nos ensina que é possível a combinação de afeição e arte, pilhéria e cordialidade, ternura e liberdade e que, por isso mesmo, a poesia pode ser simples brincadeira ou palavra de afeto aos amigos e às amadas, às pessoas e aos autores que a gente conhece e admira?

Pois bem, eu contei essas histórias para dizer que aqui, nas nossas crônicas, vamos seguir esse mesmo itinerário, porque, tal como a gente lê no livro “Mafuá do malungo: versos de circunstância” (1948), de Manuel Bandeira, vamos tentar nos dedicar ao cotidiano desimportante das coisas miúdas, mas com a certeza de que a poesia está em tudo, tudo.

Tudo mesmo, desde os amores (platônicos ou não) até os chinelos, desde as coisas lógicas até às coisas mais disparatadas, como diz Bandeira no seu “Itinerário de Pasárgada”. E foi por causa de Bandeira que escolhi o nome dessa coluna, “Mafuá do Malungo”:

— Mafuá toda a gente sabe que é o nome por que são conhecidas as feiras populares de divertimento; malungo [é] africanismo, significa companheiro, camarada.

Assim como no livro “Mafuá do Malungo”, a nossa crônica semanal deseja conjugar gracejo e amizade, mas também afetos sem afetação. Que seja previsível, porém engraçado, quiçá com algum estremecimento de emoção e com a aspiração de que literatura também é diversão.

Pois que a literatura pode ser aquela limpeza (ou leveza?) essencial de que falava Drummond de Andrade e que a própria poesia reivindica para a vida — como acentua a professora Rosana Kolh Bines — e que são as pelejas e combates de um viver límpido, translúcido e claro. E não apenas para si, evidentemente, mas também para os passantes das redes. Por que não? 

E se tudo for escrito em dó de peito e lido em breves gargalhadas tanto melhor. Porque, pensando bem, o bom mesmo é seguir se rindo dessa bobagem de contar o tempo a que chamamos vida. Quem sabe se nesse riso não retorne triunfante a poesia consoladora e boa que há-de nos trazer aquela tranquilidade e confiança de que Bandeira tanto nos fala?

A poesia voltará de novo, única solução possível para mim.
Única solução para o peso dos meus desenganos, 
Depois de todos as soluções terem falhado:
O amor, os segredos, a água, a borracha.

Ou, talvez, a gente possa se unir também à oração de súplica do poeta:

Santa Tereza rogai por nós
Estamos comendo da banda podre
Faz um ano

É, poeta, faz mais de um ano. Faz tempo. E é mesmo difícil defender, só com palavras, a vida, como Cabral de Melo Neto já dizia, sobretudo hoje quando ela é ainda mais severina. Porém, faz escuro e eu ainda canto. E eu sei que tem uns amigos, uns que são professores até, que fazem o mesmo. Acho que foi o jeito que a gente encontrou de “ouvindo esta / História, esquecer / A madrasta vida” e seguir melhor e adiante “Desta nossa leseira / Brasileira”, oh meu Poeta Malungo!

Certa vez, eu li a seguinte frase em inglês: if you can read this, thanks an English teacher. Vou adaptá-la assim: se ainda hoje consigo ler poesia (e literatura, como queiram), é porque eu tive professoras com Sandra Marjorie. Gratidão, Sandra, essa palavra-tudo!

 

Imagem: Mafuá do Malungo, 1948. Brasiliana Itaú/Acervo Banco Itaú. Reprodução Fotográfica Horst Merkel.
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