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Letras

Para não esquecer: erótico é alma!

Uma leitura de “Carmela”, de Ana Isabel Rocha Macedo

Mafuá de Malungo

Mafuá de MalungoContos, crônicas e memórias de Elton Becker.

10/12/2021 18h46Atualizado há 3 anos
Por: Redação
Capa do livro da professora Ana Isabel
Capa do livro da professora Ana Isabel

No tempo em que estudava no Centro Integrado de Educação Navarro de Brito (Cienb), ao qual voltarei outras vezes, sobretudo porque estou lendo o livro “Cienb: um farol nas sombras”, de Ivone Alves Rocha, o ensino de português e também de literatura ficava a cargo, entre outros, do emérito professor Jerônimo Alves Teixeira, que não perdoava nenhum descuido de linguagem, o mínimo que fosse, e descontava-nos pontos preciosos.

Suas avaliações eram de fazer voar os miolos e entre nós, alunos, era famosa a peleja de um estudante com o professor. “O nosso hino nacional é o mais bonito e expressivo do mundo”, escreveu um aluno para estupefação de Jerônimo. Implacável e incorruptível, ele não perdoou o cacófato (suíno). “Mas professor”, retrucara o aluno, “Camões também tem lá a sua cacofonia”. Sem sucesso. Jerônimo não abrandava: “Alma minha, gentil que te partiste é um verso. O poeta pode”!

Uma vez, esvaziaram um dos pneus do carro do professor Jerônimo (um Chevrolet Chevett, se não me engano) em vingança de uma nota baixa, baixíssima. Mais tarde, já na universidade, tive um professor tão ou mais severo com a linguagem que Jerônimo, que mantinha uma tabelinha de descontos de erros de português, a qual começava em 0,25 (25 décimos) e terminava em 1,0 (um ponto). Numa dessas, eu levei um 5 e já ia me levantando para reclamar quando percebi uma colega com nota -1,5 (menos um e meio). “Pra que discutir com madame?” — já cantava João Gilberto.

E, falando mais ainda em severidade, creio que foi o Gildásio Alves quem me alertou: “Você vai ser aluno de Ana Isabel? Cuidado”! O sobreaviso tinha lá sua justificativa e exigia algum tato, afinal Ana Isabel o havia “punido” com uma nota 9,8 em uma prova de Português Instrumental por causa de duas vírgulas! Assim, eu descobrira que a professora Ana Isabel mantinha, na linguagem escrita, o esmero e o apuro idênticos ao da linguagem falada.

No seu “Ensaio sobre a origem das línguas”, Rousseau (1712-1778) nos diz que as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem metódicas. E esses dois adjetivos, cantantes e apaixonadas, lembram-me Ana Isabel, evidente; mas também me lembram uma amiga muita querida sua e nossa: Helêusa Figueira Câmara (cujos livros precisam, urgentemente, ser reeditados, todavia falarei disso depois).

Ao pensar nelas, gosto de pensar, tal como Rousseau ensinava, que, do mesmo modo que o fonema, a nota musical é caracterizada por elementos de frequência e duração, de altura e timbre. Pois é que Ana é música e narrativa. Mas quem é Ana?

Ana Isabel Rocha Macedo é, nas suas palavras, uma mulher com vocação intensa para ser feliz e que gosta imensamente de viver — conforme ela declarou em entrevista ao jornalista Fábio Sena em 2015. Ana foi estudante e professora de Língua Portuguesa e Linguística da Uesb, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; mas, para mim, Ana Isabel é das melhores escritoras de prosa de ficção que temos. Leia os livros de Ana e, adaptando o “Hino à Conquista”, você vai perceber que este afeto bairrista não é vã mentira!

Além da boa literatura, os livros de Ana Isabel permitem perceber ainda o acréscimo de qualidade e de beleza que o objeto livro alcançou nos últimos anos, sobretudo aqui entre nós do sertão. Os livros de Ana têm sabor e importância particulares e ela já publicou três obras de ficção: “Malva: um meio-sorriso e um certo olhar” (1995, reeditado em 2016); “Heloísa: a do povo de Vicente” (2014) e “Carmela: uma história de amor” (2017).

Ela tem ainda o breviário “Oração de cada dia” (2018), que, como o próprio nome já diz, é um livro de leitura e de preces cotidianas. Embora eu faça parte desse último, tenho muito apreço por Malva e por Carmela.

O primeiro, em 2001, junto com “La sombra del viento”, de Carlos Ruiz Zafón, fez-me voltar a ler romances depois de quase cinco anos sem interesse e pior/melhor: fez-me ver a minha falta de vergonha na cara de conhecer pouco ainda a escritura de Conquista e a de Guimarães Rosa. O segundo, porém, é hoje pelo qual mais tenho apreço. Eu falo de Carmela, de seus episódios e personagens, como se fossem meus amigos comuns.

E Carmela ainda me lembra aqueles versos famosos de Adélia Prado: “Mulher é desdobrável. Eu sou” e “acho o sexo frágil mesmo [é] o sexo do homem”. Ocorre que, infelizmente, poucos dias depois seu do lançamento, Ana me disse que caretas-quadrados hostilizaram o livro. Usando as palavras de Carmela, pensei: gente abestalhada da cabeça com coisas inumanas. 

Alguns julgam com a alma, outros com a alma que não têm. Gente assim existe às dúzias e gente é assim mesmo, “cada qual tem suas razões para encarar a vida e agir no mundo dos jeitos mais esquisitos possíveis” (Carmela, p. 113). Será por isso, Ana, que as palavras média e medíocre tem o mesmo radical? Há quem viva na média achando que se mantém em equilíbrio; há outros cujas ideias estão no tempo medieval e lhes parece que sexualidade é bicho do outro mundo e de matar com pedra.

Será por que a personagem é uma prostituta que narra suas histórias e seus amores puteiro a dentro, afora e afins? — Desculpe, deveria ter escrito prostíbulo ou lupanar! Ou será por causa do apelido de Carmela? — Como se apagar o nome da personagem lhe desse outra identidade. Não vou aqui contar o apelido dela para não dar “spoiler” (“estragar” em inglês), mas esse espirituoso e provocador apelido está no Capítulo III do livro.

— Que nada, mudei de ideia. O nome dela é Carmela Buceta Seca!

“Um homem do mundo me perguntou: / o que você pensa de sexo? / Uma das maravilhas da criação, eu respondi”. Aqui é Adélia Prado, novamente. Adélia, aliás, que escreveu em outro lugar: erótico é a alma. E, lembrando as aulas de linguística, erótico é relativo ao amor ou inspirado pelo amor. Saibam todos que, em Carmela, erótico é o que há de mais cotidiano e nítido e não se trata de um modo de dizer, é um modo de sentir, que os dois casos vêm juntos.

Maior correção, melhor retificação ou enunciação que Ana poderia nos oferecer. Falando nisso, há certo “Romance” atribuído a Gregório de Matos em que ele nos propõe uma definição de amor, entre outras coisas, como embaraço de pernas, união de barrigas e tremor de artérias e em que o poeta assevera que amor, finalmente, é:

Uma confusão de bocas
uma batalha de veias,
um rebuliço de ancas,
quem diz outra coisa, é besta.

Carmela é, portanto, uma história de amor e das mais belas das nossas letras. Quem disser outra coisa, faz papel de besta! Gregório, Adélia, Rousseau, citações, porém a grande lição de Carmela e Ana Isabel — quiçá também do professor Jerônimo — seja o verso de Anitelli: “errado é aquele que fala [e escreve] correto e não vive o que diz”.

— Em tempo: eu não consegui ser aluno de Ana Isabel, pelo menos não na Uesb! Dedico esse texto ao Eduardo Moraes. A mim ele incentiva a escrever e me favorece com ideias criativas, a Ana ele incentiva a reler o que escreveu.

 

*Fernando Anitelli, ator, músico, compositor e responsável pela criação de O Teatro Mágico
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