Bahia sem fome
Crítica

Tubarões no quintal

Piedade (Idem, Brasil, 2020)

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Moviola DigitalCríticas cinematográficas, por Rafael Carvalho, pesquisador de cinema e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine).

02/12/2021 06h53Atualizado há 3 anos
Por: Redação

O cinema brasileiro atual tem se mostrado fascinado pela ideia de retratar o confronto entre os indivíduos e as grandes corporações que tudo querem ter e dominar, a velha luta entre o capital e a subjetividade humana (exemplos recentes são Aquarius, de Kléber Mendonça Filho, e Inferninho, de Guto Parente e Pedro Diógenes). Pois Piedade acaba de entrar no mesmo grupo e frontaliza esse tipo de embate, mas buscando equilibrá-lo com uma frente narrativa de recortes familiares. Uma pitada de melodrama muito bem-vinda, só que ao modo Cláudio Assis de ser e de fazer cinema.

O filme é bem o que se espera de um trabalho do cineasta pernambucano conhecido por obras polêmicas e pesadas tais como Baixio das Bestas e Amarelo Manga. Seu novo trabalho, porém, possui um tom de maior afetividade que se mistura à sua verve mais endiabrada e inquieta, fazendo-se presente aqui através de um discurso diretamente mais politizado.

Pois na pequena comunidade de Piedade, no litoral de Pernambuco, uma grande petrolífera busca adquirir toda uma faixa praieira, justamente onde a família de dona Carminha (Fernanda Montenegro) possui um restaurante à beira-mar e onde moram outras famílias que sobrevivem da pesca e da natureza local. Ela toca o lugar com o filho mais velho, Omar (Irandhir Santos), já que o marido é falecido.

A empresa – ironicamente nomeada de Petrogreen – envia como seu representante o astuto Aurélio (Matheus Nachtergaele) que tem a missão de intermediar as negociações com as famílias do local. Ele tenta parecer um homem boa praça, atencioso e amigável, mas não esconde os interesses escusos dos seus patrões. Por isso, ele começa a investigar o passado da família e vai encontrar um possível filho que dona Carminha perdeu na maternidade há mais de 30 anos. E aí entra em cena Sandro (Cauã Reymond), que vive na cidade e administra um cinema pornô que é também um clube de encontros sexuais.

Entre o submundo dos inferninhos chulé e os pequenos negócios de quem busca trabalhar dignamente, Piedade retoma a metáfora dos tubarões – animais que volta e meia aparecem de verdade nas praias do Recife. Mas os tubarões aqui são outros, mais poderosos e com garras de ferro nas plataformas marítimas. Eles estão invadindo os quintais das famílias, prestes a atacarem suas presas.

Enfrentamento

O discurso que o filme imprime, portanto, é o de confronto contra os poderosos, ainda que não consiga sair de certa superficialidade nesse tipo de embate. Mesmo que o empresário representante dos homens de poder vivido por Nachtergaele consiga fugir de certa caricatura maniqueísta (mérito do ator que nunca deixa isso acontecer), o filme não escapa de trafegar por um lugar comum nesse tipo de mote que confronta os desvalidos com os peixes grandes.

E tudo aquilo que o longa evoca enquanto resistência política, gritada pelos personagens, soa infantil e pontual demais. Sandro tem um filho adolescente que faz parte de um pequeno grupo de resistência; eles começam a promover manifestações na cidade, enveredando pelo mundo cibernético, lançando vídeos virais na internet e hackeando os sistemas dos opressores. Mas o máximo que eles conseguem alcançar é esse tipo de mobilização juvenil mais idealista – pichar muros e inserir virtualmente mensagens de repudio à Petrogreen – do que algo realmente substancial em termos de enfrentamento político.

Quem melhor encarna essa energia de embate é Omar ao bater de frente com Aurélio. Ele não se deixa enganar pela lábia do representante da Petrogreen como acontece com Carminha e aparentemente com demais moradores locais. Os talentos de Irandhir e Nachtergaele elevam bastante tais momentos, assim como mesmo as cenas mais intimistas deles dois, em separado, revelam o grande trabalho de ambos os atores.

Laços de família

Piedade se sai muito melhor quando investe nas intrigas familiares, nos dramas desenterrados que vão se desenrolando com desfechos surpreendentes em meio a um grupo de figuras ricas, complexas, feitas de carne, osso e feridas abertas. É nesse ponto que o filme consegue entrever as relações de família com certa dose de afeto, mas também de mágoas e segredos escondidos.

Seria surpreendente tal tipo de abordagem em um filme de Cláudio Assis se ele já não tivesse feito uma obra permeada de ternura e sujeira como A Febre do Rato – talvez seu melhor filme até aqui. Apesar do interesse em filmar e dar vazão a investidas mais polêmicas e incômodas, muitas vezes cruéis e duras de se ver, há também um desejo em explorar essa carga de afeições em personagens tão endurecidos pela vida. Mesmo assim, ainda que tais elementos estejam presentes em Piedade, o filme claramente possui um descompasso narrativo no momento em que o cineasta precisa arrematar tantas questões e desdobramentos que o roteiro levanta.

De um lado, Sandro não quer acreditar que ele possui uma mãe biológica ainda viva, uma outra família que poderia ter sido bem mais acolhedora do que a sua adotiva. Do outro, a família de Carminha se abala com a descoberta desse possível filho que eles sempre procuraram, mas que foi tido como desaparecido – e ainda por cima, mais um herdeiro daquelas terras que a Petrogreen quer arrematar.

Ao ter de medir forças com as discussões políticas daquele entorno – a terra sempre como troféu almejado –, a balança do roteiro se desequilibra um tanto. Falta lapidar melhor esses dramas íntimos, falta se concentrar no melodrama para torná-lo mais consistente, mais palpável, sem exigir com isso uma polidez que nunca viria de um filme de Cláudio Assis.

É como reconhecer ali um potencial dramático que não precisa abdicar desse cinema torto, sujo, marginal, mas que no fundo é também amoroso. Uma das cenas mais bonitas do filme surge daí, um encontro impossível entre mãe e filho num barco em mar aberto, imaginado, sonhado, que só existe pela mão generosa de um narrador arredio e maldito, mas ainda assim pulsante de afeto e desejo de encontro.

Piedade (Idem, Brasil, 2020)
Direção: Cláudio Assis
Roteiro: Hilton Lacerda, Anna Francisco e Cláudio Assis

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 15/08/2021)

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