Moviola DigitalCríticas cinematográficas, por Rafael Carvalho, pesquisador de cinema e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine).
Adiado em quase um ano por conta da pandemia, Duna já está em cartaz nas salas de cinema do país. O épico de ficção científica era aguardado ansiosamente pelos fãs da série de livros escrita por Frank Herbert ainda em meados dos anos 1960. A história de ascensão do herói Paul Atreides e o conflito intergaláctico em busca do domínio de uma poderosa substância são os pontapés iniciais de uma das histórias mais influentes e importantes da ficção científica e da cultura pop.
Coube a Denis Villeneuve, cineasta canadense responsável por superproduções recentes como Blade Runner 2049 e A Chegada, a missão de levar para os cinemas uma história complexa que envolve muitos personagens e uma série de elementos fantasiosos, desde as disputas entre casas rivais pelo controle do planeta Arrakis, uma jornada do herói de tons messiânicos, uma ordem religiosa cheia de mistérios e, claro, os desejos de poder e controle do universo.
São tantos detalhes, nomenclaturas e linhas narrativas que Villeneuve preferiu adaptar apenas metade do primeiro livro de Duna – a se desdobrar em mais uma série de outros volumes que expande bastante a mitologia criada pelo autor norte-americano. Espera-se que muitos outros filmes sigam a franquia porque o que se encontra neste primeiro longa é o início da ascensão de Paul Atreides (Timothée Chalamet), filho do duque Leto Atreides (Oscar Isaac). Chefe de uma das famílias mais influentes do Império, Leto começa o filme sendo convocado a governar o cobiçado planeta Arrakis.
É ali, em meio a uma paisagem desértica, em que as temperaturas são altíssimas durante o dia e há grande escassez de água, onde é gerada a preciosa Especiaria, uma substância misturada às areias do deserto que concede aos indivíduos poderes de expansão da consciência e das habilidades mentais. Ela também permite a viagem interestelar, o que a torna uma mercadoria de suma importância para o Império.
O problema maior é que o deserto é habitado por criaturas gigantescas que vivem no subterrâneo das dunas, semelhante a grandes minhocas de boca ameaçadora e fome voraz. Além disso, em Arrakis vivem os Fremen, povo do deserto que se rebelou contra os poderes vigentes e vivem como nômades refugiados no seu próprio território; são hábeis lutadores e detentores de conhecimentos ancestrais. Eles fazem uso recorrente da especiaria e por isso possuem os olhos azulados.
Gênese do herói
Nada disso, no entanto, faria sentido em termos de narração fabular sem a presença de um herói. Paul Atreides é uma dessas apostas e seu personagem ganha ares de Messias, pois existe uma antiga profecia que prevê a chegada de um ser poderoso capaz de dominar o espaço-tempo e salvar o povo da dominação e opressão.
Além de pertencer à linhagem nobre da casa Atreides, ele também é filho de Jéssica (Rebecca Ferguson), uma sacerdotisa pertencente à ordem das Bene Gesserit, ordem de mulheres, tidas como feiticeiras, que possuem grande poder de influência no Império por conta de suas habilidades mágicas e treinamento especial.
Duna, portanto, está cercado não apenas de disputas políticas e conflitos armados entre grupos rivais, mas também de uma dimensão religiosa com ares míticos. Nesse meio, Paul busca se entender como pertencente a essa linhagem especial e já apresenta algumas habilidades específicas, como os estranhos sonhos e visões de possíveis acontecimentos futuros que lhe surgem repentinamente.
Ele também foi treinado pela mãe na doutrina das Bene Gesserit, algo restrito às mulheres (a ordem é exclusivamente feminina), e com isso ele também domina a Voz, uma espécie de técnica mágica que permite que as pessoas obedeçam aos seus comandos pela força da mente. Se o herói é uma figura central aqui, é curioso perceber como a figura da mãe vai ser fundamental para o personagem na sua caminhada.
Longa jornada
Todas essas particularidades fazem de Duna uma obra épica que merece uma adaptação à altura do seu valor como ficção científica e como obra de enorme influência para o que veio depois – de Jornada nas Estrelas a Star Wars e até mesmo Guerra dos Tronos.
Essa tentativa, aliás, foi feita há muito tempo. Nos anos 1970, caiu nas mãos do diretor chileno Alejandro Jodorowsky os direitos de adaptação do livro, mas a produção nunca foi concluída – o cineasta, já conhecido por obras de tom místico e de cores surrealistas, tinha ideias mirabolantes para o filme, com pretensões de simular o efeito de alucinação por LSD no público através de invenções visuais inovadoras. O filme não foi feito, mas o documentário Duna de Jodorowsky esmiúça bem essa história.
Mas a adaptação saiu do papel em 1984, pelas mãos do renomado David Lynch, outro cineasta ligado ao surrealismo e às invenções formais. Seu Duna, no entanto, possui um apelo mais comercial, diferente do que ele havia feito até então, apesar do visual estravagante e dos efeitos especiais toscos, sendo um fracasso à época.
Somente agora, com o avanço da tecnologia de efeitos atuais, Duna ganha uma versão cinematográfica de grande porte e com uma pegada mais realista e séria dentro do âmbito da ficção científica fabular. O filme é um espetáculo visual que fará feliz os fãs da série em termos de reconstituição daquele universo tão particular.
Em alguma medida, a trama é menos empolgante do que se vende e em comparação com todas essas franquias de ficção científica e fantasia que foram produzidas nos últimos anos. É importante lembrar que sendo o livro Duna anterior a todo esse movimento – e ao boom do cinema pop blockbuster no final dos anos 1970 –, a própria obra possui ritmo e cadência muito específicos.
Nesse sentido, o trabalho de adaptação de Villeneuve segue o caminho da fidelidade ao material original e, em especial, à criação não apenas dessa mitologia repleta de minúcias, mas também à formatação de uma atmosfera de tensões que se dão pelos embates políticos e pelas forças mágicas em jogo. Não é tarefa fácil, mas o diretor se sai muito bem nesse quesito.
É certo que esse primeiro filme funciona como uma introdução ao universo de Duna e pode soar confuso para muita gente, por vezes muito didático. A relação de Paul com os Fremen, por exemplo, em especial com a jovem Chani (interpretada por Zendaya), apenas se inicia, assim como muitos outros conflitos que se desenham aqui. A jornada parece ser longa.
Duna (Dune: Part One, EUA/Canadá, 2021)
Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Denis Villeneuve, Jon Spaihts e Eric Roth
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 24/10/2021)