Conversa de BalcãoDicas, críticas e curiosidades culturais - para beber, beliscar e jogar conversa fora.
Depois de mergulhar na carreira do cantor e compositor Gilberto Gil — sendo um dos milhares de espectadores do show Tempo Rei, em Brasília — fiquei perturbado. Uma perturbação boa.
Primeiro, tentei lembrar quando foi que ouvi Gilberto Gil pela primeira vez. Como o descobri? Fiquei me perguntando, mas não consegui voltar com precisão no tempo.
Na infância, eu ouvia as músicas que “passavam” na TV, nas festas da escola, no São João, no carnaval… e também na rádio-poste ao amanhecer. Havia ainda as fitas K7 que meu pai trazia de cada viagem. Toda vez que ele parava o caminhão na porta de casa, eu entrava na cabine e fuçava tudo para pegar emprestadas as novidades e ouvir no toca-fitas (ou no “meu primeiro Gradiente”).
Foi assim que conheci Leandro e Leonardo, Roberto Carlos, Chitãozinho e Xororó, Gian e Giovani, Roberta Miranda, Sula Miranda…
Na missão de lembrar Gil, pensei na abertura do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Mas os episódios que assisti eram do remake dos anos 2000; então imagino que seu Gil chegou antes. Talvez numa trilha sonora de novela. Está impossível saber.
Nunca me esqueci, porém, de um livro de literatura que trazia uma de suas letras no capítulo sobre figuras de linguagem. Também me marcaram as coleções de CDs dos meus tios — que eu revirava sempre que podia, descobrindo Gal, Zé Ramalho, Alceu, Ney, Elba… Na grande coletânea de discos de Carlinhos — talvez a sala mais musical de toda Cândido Sales — certamente havia uma leva de Gilberto Gil. Mas nesses a gente não mexia. Nem eu, nem os fi de Carlin.
Admito a incompetência da memória, então vamos ao show, que está mais fresco.
Gilberto Gil decidiu encerrar suas grandes turnês com um espetáculo memorável, que está rodando o Brasil. Um show perturbador de tão bom — no melhor sentido possível da palavra.
O repertório segue um percurso lógico, dividido cronologicamente e por estilos: blocos de reggae, rock, pop, samba, forró — incluindo todos os seus clássicos. Começa com Palco, de 1981, quando ele cogitou abandonar os palcos, e vai até Toda Menina Baiana, com direito a uma tempestade de confetes. Passa por Tempo Rei, que dá nome à turnê, Expresso 2222, Refavela, Domingo no Parque, Não Chore Mais, Extra, Cálice, Aquele Abraço e Andar com Fé.
Foram duas horas e meia de música. Todas necessárias. Cada minuto valeu.
Esse foi o terceiro show de Gil que assisti. O primeiro, na praça de Jequié, durante o São João — só forró, xote e baião. O segundo, no Festival de Inverno: uma hora e vinte de grandes sucessos, como são os shows de festival.
Esse terceiro, no entanto, foi único. O melhor dele — e o melhor de todos.
Aí veio uma nova perturbação, que já nasceu como um labirinto: como classificar Gilberto Gil? Um mestre? Um gênio? Uma lenda? Um ícone? Um patrimônio? Um deus vivo? Uma entidade?
Todas essas palavras me passaram pela cabeça, mas não ousei escolher. Nenhuma dá conta.
Fui ao ChatGPT perguntar o que dizem sobre Gilberto Gil e sua última turnê. A resposta mais poética e verdadeira que recebi — e que faço questão de compartilhar — foi esta:
“Gil é tempo, som e alma. É Bahia e mundo, é ancestralidade e vanguarda. Enquanto vive, canta e encanta — vivemos na sorte de vê-lo ser lenda em tempo real.”
Mas o que eu tenho a dizer é mais simples:
Gilberto Gil é o senhor dos palcos — de todos os palcos. Um senhor daqueles que a gente reverencia e pede a bênção. Um senhor que, mesmo em silêncio, já diz muito. Obrigado, Kiriê Gilberto Gil.
*Kiriê, do grego, significa “senhor”; Gilberto Gil usou a expressão na música “Refavela”, junto com a expressão do iorubá “iaiá”.