Moviola DigitalCríticas cinematográficas, por Rafael Carvalho, pesquisador de cinema e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine).
As cinebiografias de personalidades artísticas brasileiras lançadas nos últimos anos têm escolhido fazer um recorte temporal específico para falar de seus biografados, a fim de não correr o risco de atropelar o filme com uma série de eventos importantes e sem muita contextualização. Além disso, tem-se evitado a representação muito exagerada e que apenas imite os traços da pessoa real para que a composição do personagem não pareça acima do tom.
Pois na contramão dessa tendência, Esmir Filho lança agora Homem com H, retrato amplo e sem amarras da vida e carreira de Ney Matogrosso, passando justamente por esses caminhos narrativos e, mesmo assim, entregando um filme primoroso e digno da trajetória desse grande artista e contestador cultural.
Ney Matogrosso ganha uma incorporação muito bonita no jovem Jesuíta Barbosa, que já era um grande ator desde que protagonizou Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda. Aqui, ele e o diretor encaram uma tarefa dificílima: dar corpo a um indivíduo que se comunica pelo corpo, com seus trejeitos e postura nada convencionais para um mundo heteronormativo e até mesmo cuja voz (não fina, mas de afinação especial, como diz um professor de música no filme) é tão peculiar.
A voz não é um grande problema aqui porque os números musicais são dublados – não há como imitar uma voz daquela. O grande mérito do filme é conseguir um equilíbrio entre a imagem midiática de Ney Matogrosso e as nuances de sua personalidade – seja a maneira irreverente e atrevida que ele assume nas apresentações, seja o jovem imaturo que procura encontrar seu caminho profissional e pessoal, seja o homem de fibra que aprende a se impor no mercado fonográfico brasileiro.
O filme passa pela infância e juventude de Ney, no Rio de Janeiro dos anos 1940 e 1950, e chega até os dias atuais – o próprio cantor acompanhou de perto a realização do filme. Filho de pai militar (vivido por Rômulo Braga) e uma mãe amorosa (Hermila Guedes), o jovem precisa lidar com uma educação rígida e o embate direto com a figura paterna castradora que não aceita as escolhas de vida do filho, com sua sexualidade aflorada e sua inclinação para a arte.
Nem mesmo a chegada do Governo Militar – que até mesmo o pai dele vai recriminar em certo momento da trama – vai ser capaz de tirar o jovem, agora vivendo em Brasília, do caminho da música, sua verdadeira vocação. As canções que foram imortalizadas na voz e performance de Ney encaminham toda a narrativa do filme, sem parecer uma lista de hits de Matogrosso.
Ator-cantor
Em certo momento da trama, ainda na juventude, Ney é impelido a cantar, já que sua voz apresenta uma afinação diferente, ao que ele responde: “Eu não sou cantor, eu sou ator”. Estava posta ali a vontade de performar e de fazer do palco sua casa, mas veremos que é na música que Ney Matogrosso encontrou uma forma de dar vazão à arte da interpretação que é também uma forma de atuar.
Quando é convidado a integrar o grupo Secos & Molhados, junto com João Ricardo (Mauro Soares) e Gérson Conrad (Jeff Lyrio), ele pode mostrar todo seu talento e já aparecem ali os trejeitos afeminados e a indumentária e maquiagem exóticas e espalhafatosas com que ele passará a ser conhecido, mesmo depois de abandonar o grupo – e mesmo com o preconceito da sociedade brasileira.
Mas a partir daí sua imagem já estava consolidada, não apenas pelo sucesso da banda, quanto pela icônica interpretação de Sangue Latino e Rosa de Hiroshima. Seguindo carreira solo a partir de meados dos anos 1970, as intepretações de sucesso somam-se na carreira dele: Poema, Pro Dia Nascer Feliz, Mal Necessário, O Tempo Não Para e mesmo o incomum forró Homem com H que dá título ao filme.
Esmir Filho conseguiu incorporar na trama as principais canções que fazem parte do repertório do cantor, mas consegue contextualizá-las ao momento em que ele estava vivendo e suas inquietações, sejam artísticas ou pessoais. Esse talvez seja o maior mérito do filme: não transformar uma carreira tão rica em meras pílulas de momentos que precisam ser sublinhados para o espectador.
Amores e dores
A carreira de Ney está entrelaçada pela vida pessoal e pelos conflitos íntimos que ele enfrentou na sua relação com os outros. Primeiro há o embate com o pai, e isso ganha importância no filme porque não é um mero adendo de sua formação familiar. Na trama, vemos como a intransigência paterna foi cedendo lugar ao amor e ao carinho que ele sempre nutriu pelo garoto, apesar dos estranhamentos.
Mas é nas relações amorosas e sexuais que o filme abre outra brecha para demarcar a personalidade singular de Ney Matogrosso: sua liberdade enquanto indivíduo passa também pelo contato com as pessoas que ele amou e com quem transou ao longo da vida. É, de fato, uma maneira muito livre e desgarrada de lidar com o desejo e o tesão – por homens e mulheres – que ele nutriu ao longo da vida e que está explícito também na suas músicas e na forma de se mostrar ao público.
E claro, sua relação e encontro com Cazuza (vivido aqui por Julio Reis) ganha a intensidade necessária no filme, fora a parceria musical que eles estabeleceram, marcante para a carreira de ambos. Talvez o que poucos sabem é do relacionamento de 13 anos que Ney manteve com o médico Marco de Maria (interpretado por Bruno Montaleone) nesse mesmo período, inclusive dividindo o namorado casualmente com Cazuza, sempre muito ciumento e já um rapaz um tanto rebelde.
Tal amor louco e livre vai ser barrado pela epidemia de Aids/HIV que assolou o mundo a partir da década de 1980, principalmente entre a comunidade queer. O caso de Cazuza é bastante emblemático no contexto brasileiro, mas Marco também foi infectado, enquanto Ney passa incólume pelo vírus, não sem sofrer a perda dos queridos amigos e amantes e ver toda uma classe padecendo de pesar e luto. O filme faz um retrato muito respeitoso e melancólico deste momento.
Com uma vida marcada por amores e dores, a trajetória de Ney Matogrosso talvez tenha demorado para ganhar as telas do cinema, mas recebeu um tratamento à altura do talento e da importância do cantor para a cultura nacional. Jesuíta Barbosa e Esmir Filho passaram pela difícil prova e oferecem ao público uma das melhores cinebiografias musicais dos últimos anos no Brasil.
Homem com H (Idem, Brasil, 2025)
Direção: Esmir Filho
Roteiro: Esmir Filho
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 04/05/2025)