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Poesia

O pintor que eternizou o horizonte

A cena que inspirou esta prosa poética: um pintor que correu repentinamente da obra à motocicleta

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Multi(Versos)Fotos, paisagens, gentes e memórias escritas na poesia de Marco Jardim (@marcoajardim no Instagram)

06/03/2025 20h04Atualizado há 2 semanas
Por: Redação

O pintor subiu cedo no alto do muro, como fazia todos os dias. Espalhava o azul cobalto sobre o muro como um ritual monótono, contínuo, repetido. O pincel dançava, mas sem alma, traçando linhas que nada ecoavam. Às vezes, o sol, ao tocar a parede, devolvia-lhe um brilho inesperado, como se quisesse despertá-lo de seu estado letárgico. 

Na maior parte do tempo, o pintor permanecia imerso em um silêncio profundo, perdido em paisagens que só ele podia ver, como se sua própria essência estivesse presa nos matizes daquela cor que se derramava sobre o concreto. Seus braços, já cansados, manejavam o pincel, deixando rastros que, aos poucos, preenchiam a vastidão sólida. 

Mas, naquele dia, algo o perturbava. O peso da tinta parecia mais denso, como se carregasse o próprio peso do mundo. O ar, antes rotineiro, agora o oprimia, sufocante, como se as paredes que ele coloria quisessem engoli-lo, como se faltasse espaço.

De repente, num gesto abrupto, largou o pincel. O som seco de sua queda ecoou no vazio. Desceu do banco de suspensão com pressa, como quem foge de uma prisão invisível. Seus pés mal tocavam o chão enquanto cruzava a obra, ignorando os rostos e as vozes que o cercavam. Não olhou para trás. Correu até sua motocicleta, sentindo o coração bater mais forte a cada passo. Não se importou com o capacete (não havia regras que pudessem contê-lo naquele instante).

Ali, no meio de um vasto campo, uma árvore solitária se erguia, testemunha silenciosa das idas e vindas de outras motocicletas estacionadas. Seus galhos eram como memórias, tempo estendido, saudade. Suas folhas eram brisa preguiçosa sussurrando segredos antigos. A árvore, quase muda e imponente, testemunhou a agonia do pintor em sua luta interior.

O pintor ligou o motor e, em um só movimento, avançou pela estrada, acelerando como se o mundo o perseguisse. Mas, ao invés de medo, sentiu alívio. Abriu braços, peito, alma, olhando para o céu (azul-cobalto) num respiro, sentindo o vento tocar sua pele como carícia de liberdade. A estrada de terra, longa, sinuosa e desconhecida, era sua agora. 

Ele finalmente se libertava das paredes, tintas, pincéis, amarras. Não havia paleta de cores a preencher, limites a seguir. Havia tão-somente o infinito à sua frente. Cuspiu, acelerou e partiu num abraço solene rumo ao sonho de ser perene, mais que o reflexo empoeirado no retrovisor.

Por Marco Jardim

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