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Cinema

“Ainda Estou Aqui” é a história de uma família destroçada pelo curso da História

Crítica de Rafael Carvalho

Moviola Digital

Moviola DigitalCríticas cinematográficas, por Rafael Carvalho, pesquisador de cinema e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine).

09/11/2024 16h04Atualizado há 4 semanas
Por: Redação

Filmes nacionais que se situam durante a Ditadura Militar não são necessariamente escassos na filmografia brasileira, ainda que esta sempre me pareceu frágil ou mesmo repetitiva e pouco propositiva no retrato de sua História de modo geral (mais difícil ainda é lidar com a História recente do país). Daí que Ainda Estou Aqui, filme evento de Walter Salles, nosso representante ao próximo Oscar, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, é mais uma produção que fala sobre o período pela perspectiva da família desfeita, daqueles que ficam quando a ausência e o medo se instalam no lar.

Rubens Paiva, engenheiro civil politicamente engajado, ex-deputado federal, em um dia de janeiro de 1971, é levado pela polícia política e nunca mais voltará para casa. Sua esposa, Eunice Paiva, e os cinco filhos amargam o sumiço e a falta de informações sobre o paradeiro dele – ela e uma das filhas são também presas e torturadas, mas logo soltas.

Tudo no filme é muito facilmente codificado para o público brasileiro minimamente informado – a época, os costumes, a cultura intelectual e artística cultivada por uma família de classe média carioca, mas sobretudo o fio narrativo que conhecemos bem: a repressão policial e a militância política e o modus operandi do sumiço imposto aos contestadores do regime ditatorial. É a história de uma mulher e sua família em pedaços que espelha tantas outras famílias de pedaço arrancado, espelha ainda um país fraturado.

Pode não haver muita novidade aqui em termos temáticos ou mesmo estéticos, mas quanta sobriedade e solidez exalam do conjunto todo. Diante do já sabido e do pouco comentado, a opção é encenar tudo com presteza, atenção aos detalhes, mas principalmente um sentido muito marcante de consistência dos passos e descaminhos que essa mulher precisa forjar diante da situação de violência e destituição que a família sofre. Fernanda Torres encarna a resistência pacífica de Eunice, enquanto Selton Melo, a placidez de um homem engajado politicamente e ciente dos riscos, mas que tenta sempre manter o espírito elevado e a união familiar.

Não é um filme que se faz de entrelinhas ou de não-ditos. As coisas estão muito às claras e reforçam o sentido político do gesto de não deixar esquecer – os nossos mortos, o nosso passado nunca superado –, mesmo nas situações de maior tensão. A trama poderia começar com a prisão de Rubens, mas dedica um bom espaço para cristalizar as relações familiares, o clima de repressão nas ruas, o perigo de algo que está por vir. No dia em que ele é levado, homens que executam a prisão permanecem na casa, monitorando os passos dos demais membros da família como presenças ameaçadoras, até conduzir Eunice e a filha para o cárcere. Os dias de Eunice na prisão também são marcados pela opressão devida, mas com um sentido pleno de compressão silenciosa pelo que se passa ali.

O tempo que o filme toma para construir e dar a dimensão de todos esses momentos é algo realmente exemplar pelo olhar acurado de uma encenação precisa, elegante até, dentro de um registro clássico e formalmente limpo – ainda que o filme seja tomado pelas sombras quando necessário. Existe uma clara opção por um tom menos alarmista e dramático, especialmente na contenção da dor dos que puderam permanecer em casa, o que não deixa de potencializar o horror e a violência.

Daí que o filme tangencia o tema da oposição intelectual ao regime (em certo momento, o roteiro resolve num diálogo muito objetivo a interrogação da própria Eunice e de parte do público sobre o envolvimento de Rubens na resistência política), da tortura (vista de soslaio, longe de cenas gráficas ou explícitas) e da luta pela justiça e verdade que passa a ser o intuito de vida de Eunice dali pra frente. Tudo isso sem pretensões didáticas ou de aprofundamento temático. No fundo, é a história de uma família destroçada pelo curso da História.

O retrato de resiliência de Eunice passa a ser sua marca maior, a partir da necessidade de reinventar a vida familiar e mesmo uma carreira pessoal e profissional. A grande Fernanda Montenegro surge ao fim para dar continuidade à atitude e ao olhar firme dessa mulher, silenciosa e já adoentada, e é dos momentos emocionalmente mais intensos de um filme de intensidade contida, mas não menos comovente.

Ainda Estou Aqui (Brasil/França/Espanha, 2024)
Direção: Walter Salles
Roteiro: Murilo Hauser, Heitor Lorega e Marcelo Rubens Paiva

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