Bahia sem fome
Cinema

Subversões em cor-de-rosa

Barbie (EUA, 2023)

Moviola Digital

Moviola DigitalCríticas cinematográficas, por Rafael Carvalho, pesquisador de cinema e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine).

03/08/2023 20h59
Por: Redação

As notícias sobre a produção de um filme da Barbie acenderam muitas dúvidas e sinais de alerta. De um lado, o legado de um produto icônico que atravessou gerações e se concretizou na cultura infantil, e para além dela; de outro, o questionamento de um padrão de beleza e de feminilidade extremamente padronizado e conservador que o estilo de vida da Barbie representa para muitas meninas ao redor do mundo. Numa época em que se faz filmes de super-heróis para se vender bonecos, o que esperar do filme de uma boneca?

Ou, mais especificamente, desta boneca em si, que nunca foi vista como heroína, mas que agora precisa confrontar as duras penas do mundo real – diga-se, machista e misógino. E, assim, a diretora Greta Gerwig mexeu em um vespeiro. Com o apoio de Margot Robbie (além de estrelar o filme, também é produtora do longa), e de Noah Baumbach, com quem escreveu o roteiro, Gerwig conseguiu um feito e tanto: parece ter lutado um cabo de guerra para equilibrar chutes na porta e afagos no legado; ao mesmo tempo ácido e combativo, o filme tem humor e grande presença de espírito para desenhar um mundo encharcado em cor-de-rosa, vivaz e fruto de imaginação.   

No mundo de plástico e felicidade constante da Barbie, tudo parece perfeito. Não há trabalho, apenas diversão e amizade, em tudo comandado pelas mulheres. Aliás, todas ali são Barbie – Robbie interpreta o que eles chamam de Barbie Estereotipada, a mais convencional, a que nos guiará nessa trama de autoconhecimento. Já o Ken de Ryan Gosling é só mais um Ken entre tantos outros que passam os dias pegando onda na praia e tentando roubar um beijo das garotas.

Mas o clima de perfeição se esvai quando a nossa Barbie modelo passa a ter pensamentos de morte e celulites nas pernas. Quando ela tira o sapato de salto alto, seu pé fica plano, tocando completamente o chão, o que é um sacrilégio para qualquer boneca de plástico. E aí, o filme amplia seu universo: a vida das bonecas na Barbielândia é um reflexo de como essas criaturas são tratadas no Mundo Real, lá onde as crianças brincam com elas.

Há toda uma lógica de espelhamento entre esses mundos, o que dá à Barbie uma missão: ajudar a menina que brinca com ela no outro plano, pois alguma coisa está errada. Com a ajuda de Ken, Barbie cruza essa fronteira e vai perceber que o Mundo Real não é tão magnífico e empoderador das mulheres como elas acreditavam no seu universo de fantasia.

Rajada pink

Assim, o filme envolve os personagens em uma trama de redescoberta daquilo que já sabemos: o conceito de mundo colorido, fútil e ultradivertido que a Barbie vende não passa de fachada, ainda mais no pós movimento #MeToo. A Barbie descobre suas humanas e os conflitos geracionais entre mãe e filha (América Ferrara e Ariana Greenblatt), representativo da mudança de valores que o filme quer atualizar. Por outro lado, o Ken também faz suas descobertas: o mundo de verdade é controlado e movido pelos homens, algo que, veja só, acaba empoderando o pobre rapaz.

Com isso, o filme aciona uma metralhadora de cutucadas, piadinhas, autogozações e desconstruções dos símbolos do feminino (e do masculino também, por consequência) com graça e muitas piscadelas para o público, ao mesmo tempo em que denuncia o patriarcado e todo um estado de opressão vivido pelas mulheres. O roteiro assume de cara as implicações políticas que este confronto com a “realidade” tensiona nos personagens e também no público, que vai encontrar aqui uma série de discussões do nosso tempo, inimagináveis em um filme de Barbie.

O longa possui um senso de ironia poucas vezes visto no cinema de entretenimento, muito por conta dos muitos constrangimentos que esse tipo de produção pode causar. A saída, então, é encarar todos eles, fazendo troça sempre que possível de todos que aparecem em tela. O maior deles é com a própria Mattel, empresa que criou a Barbie ainda no final dos anos 1950 e é uma das produtoras do longa.

Há, inclusive, a representação carnal desses executivos no filme. Will Ferrell encarna o presidente da empresa, junto com uma trupe de outros empresários que se desesperam com a Barbie no mundo real e querem que ela volte para seu mundo de plástico. São representados como homens gananciosos, um tanto hipócritas, mas acima de tudo risíveis. É uma maneira sagaz de jogar o jogo das aparências, rir de si mesmo como forma de superioridade moral, com o claro intuito de ainda continuar vendendo muitas bonecas barbies mundo afora.

Jogo duplo

São essas pequenas contradições encharcadas em cor-de-rosa que fazem do filme um corpo estranho no cinema comercial contemporâneo, mas também irresistível ao olhar. Margot Robbie encarna com precisão essa personagem que pende para a futilidade, mas facilmente toma o caminho da militância feminista. E Ryan Gosling se encontrou aqui, perfeito no seu Ken imaturo, homem padrão de masculinidade frágil.

Toda a composição visual do longa e dos personagens faz valer as suas intenções  de desconstrução moral, ainda que mantendo o imaginário em torno do universo dessa boneca clássica. E é, de fato, um filme muito divertido. A sessão passa como uma revisão de um legado – aparecem até mesmo os curiosos bonecos e bonecas que saíram de linha no decorrer do tempo, como a Barbie grávida, por exemplo –, ao mesmo tempo em que o filme aponta para a desconstrução dos padrões sociais machistas – destaque para o personagem Allan (Michael Cera) como o homem aliado das mulheres.

Não é uma tarefa fácil de realizar, dadas as muitas frentes que o filme precisa conter. Além de ter por perto a Mattel supervisionando e tendo que endossar o projeto (ainda que os roteiristas aleguem total liberdade na escrita do roteiro), há uma demanda enorme pelo sucesso comercial do filme, a despeito do seu orçamento milionário e de sua campanha publicitária agressiva.

Nesse embate, é curioso ver como Greta Gerwig consegue equilibrar tantas intenções e finalidades que se contrabalançam no decorrer da trama, mesmo que pendendo para a manutenção do produto comercial. Nos dias correntes, seria impossível fazer um filme desses aos moldes clássicos da boneca símbolo – ou até pode (as plataformas de streaming estão cheias de animações toscas da Barbie para entreter criancinhas). Mas o filme de Gerwig não é para criancinhas – a classificação indicativa é de 12 anos – nem se lança ao desordenamento total das instituições patriarcais. Porém, revela, com certa sagacidade, as faces do poder de homens e mulheres.

Barbie (EUA, 2023)
Direção: Greta Gerwig
Roteiro: Greta Gerwig e Noah Baumbach

*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 22/07/2023)

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