Multi(Versos)Fotos, paisagens, gentes e memórias escritas na poesia de Marco Jardim (@marcoajardim no Instagram)
Eu parecia estar dormindo, com imagens de mera fantasia se constituindo.
Era fim de tarde de domingo e não fugi das agitações juninas.
Apesar de contínuo vento frio, havia uma luz, um semitom, e alguma sensação de saudade.
Eu via me vendo nas crianças com chuvinhas nas mãos.
Eu via meu vulto brilhando nas gotas da flor de chita, muito mais que posso vê-lo hoje ao ar livre.
Sob a sombra de bandeirolas, via em mim um homem fragmentado.
Avistei um senhor distinto, num terno xadrez bem cortado, de alfaiataria, sustentando-se, por uma das mãos, numa bengala de madeira de lei.
Noutra mão, segurava o braço de uma senhora, que vestia bata alva, plissada na cintura, pés calçados em rasteira de renda clara, flor-de-São-João no cabelo.
Rapazes e moças, mais jovens e mais apressados, caminhavam de um lado a outro pelas ruas do arraial sem notar os vestígios das bandeirinhas farfalhando no ar.
Sob a sombra dos papeis de seda, via em mim um homem despedaçado.
As flâmulas batiam feito balões de estrelas felizes com as coisas cá de baixo.
Uma sinfonia inteira que tomava o céu como mar de cores, perto da igreja matriz, donde ergueram, a contento, um pau-de-sebo.
Meu coração se sentia bem-aventurado ao som do vento.
Mas também tomado por certa angústia, uma aflição que não deveria ser.
Sob a sombra das galhardetes, via em mim um homem alquebrado.
Sentei-me para ler o tempo que passava na incomparável luz do sol.
Aquele reflexo, das cores de um corpo em outro no forró, fazia minha lembrança turvar.
Eu ali, numa quermesse de interior, ao lado de uma ciranda, de uma contradança e das fitas do mastro.
Sob a sombra dos pavilhões, via em mim um homem esfacelado.
Vestido em camiseta branca, colar de cordas e tranças, calça solta, sandálias de couro sem meias a cobrir os pés frios, bracelete indígena cor de barro cru, cabelos
livres sob a sombra dos emblemas, tive a sensação de que parte de minha formação moral estava lá, sob as bandeirolas.
Meu beijo estava lá, como um reino grandioso e fadado.
Sob a sombra das divisas, via em mim um homem separado.
Ainda que estivesse envolto em algum refúgio celestial do fim da tarde, fui chamado para proferir uma homenagem ao santo.
Fiz gente rir e chorar e terminei no jargão de que a paz do domingo começa no coração.
Digo jargão porque tive que acordar das coisas no mundo da tarde, que pareciam um tanto entornadas, como a água da bacia lavada nos pés do trovador.
Na escadaria do casarão ladeando a igreja, o trovador era um sanfoneiro solitário, cego da retina, que fez da paisagem sonora minha declaração divina.
Sob a sombra dos estandartes, vi em mim um homem dividido.
Jamais havia notado tantas pequenas bandeiras hasteadas no ar pelas tiras de cordão.
Sempre me apeguei às pessoas que se aferram ao mundo em transformação.
Preferiria ver o sol assim, brilhando refletido nas fendas da seda do papel.
Sob a sombra das divisas, via em mim um homem estilhaçado.
Vi a grata presença dos que acompanhavam a procissão para algum lugar do dia ou da noite a tardar.
Vi o sorriso das meninas gêmeas vestidas de chitão tom de brasa.
E espíritos antigos a dançarem na vila, estampando cores inteiras, tais quais bandeirolas sobre as fogueiras.
Cumprimentei o moço da zabumba, que acompanhou minha vista ao céu pontilhado de aquarelas.
Sob a sombra dos jalões, via em mim um homem avariado.
"Quais cores você vê nestas formas que voam sob o grande nevoeiro espalhado?", perguntaram-me.
Vejo primeiro as bandeirolas em sépia, amareladas.
Tudo o mais, ao pôr-do-sol, parecem costumes de devaneios acalentados.
Sob a sombra das bandeirolas, o que vejo em mim é um homem de sonhos fraturados.
(Marco Jardim)