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Literatura

O novo livro de Conceição Evaristo

Escritora transforma histórias contadas de boca em boca em 'Canção para Ninar Menino Grande'

Conversa de Balcão

Conversa de BalcãoDicas, críticas e curiosidades culturais - para beber, beliscar e jogar conversa fora.

16/12/2022 18h47
Por: Redação
Fonte: Folha

A escrita é uma traição da oralidade, diz Conceição Evaristo, que mesmo assim não demonstra a menor intenção de parar de transformar uma na outra. Foram as histórias que ouviu de boca em boca que deram à mineira a competência de se tornar autora, segundo ela, e despertaram seu desejo de escrever.

O desafio de verter falas no papel, na verdade, parece ser o que mais seduz essa escritora que reconhece, lúcida e modesta, a insuficiência de uma só voz autoral para dar conta de toda a verdade. Mesmo que sejam verdades ficcionais.

"Eu escrevo o que escuto, não o que me dizem", resume uma mulher cada vez mais inescapável nas listas das grandes autoras brasileiras em atividade. "Você pode, sim, escrever a história do outro, mas tem que ter consciência de que vai deixar lacunas."

É um problema que Evaristo resolveu com destreza em "Canção para Ninar Menino Grande", que está publicando agora pela Pallas e que já tinha saído como uma história menor há alguns anos. A própria narrativa, ao ser repensada como livro novo, brinca com a dificuldade de se confiar em causos ouvidos por aí.

Se naquela edição limitada a trama se restringia ao romance adúltero de uma vida inteira entre Juventina Maria Perpétua e Fio Jasmim, aqui a narradora faz um mea culpa —e diz que a história não havia sido contada direito a ela.

Evaristo expande o romance então para "compor uma grande ária" com as vozes de mulheres que antes eram citadas só de nome. Em comum, todas tiveram uma paixão tórrida pelo mesmo Fio Jasmim —homem negro que permanece em silêncio por todo o livro, com as peripécias descritas e a masculinidade analisadas pelas mulheres que passaram por sua cama.

As tramas de Evaristo cantam desde a solitária Dolores, joalheira rica de quem Jasmim se aproxima ao comprar anéis, numa sedução discreta e abrasante, até Dalva Ruiva, que conquista uma independência jovial ao escapar da família para se tornar prostituta.

A carga sexual das histórias é mais acentuada que nas demais obras de Evaristo —algumas até funcionam como singelos contos eróticos. Veja esta cena que acompanha Aurora, uma mulher que gosta de nadar nua no rio da cidade sem ligar para a audiência numerosa que a acompanha.

Os olhos dos homens ao ver a jovem "vertiam águas, e também seus membros eretos, na distração da cena, se tornavam gotejantes". Mas também as mulheres, "discretas e ternas como se estivessem alisando as pétalas de uma frágil flor, timidamente e em silêncio passavam as mãos em suas entrepernas".

Conceição Evaristo

"É uma permissão que me está sendo ensinada por escritoras jovens", diz Evaristo nesta entrevista por videochamada. "Eu sou de uma geração que afirmava muito uma negritude, afirmava a nossa vivência a partir das experiências étnicas, de mulheres e suas dores. Nós cantávamos o corpo negro com veemência, mas dificilmente cantávamos a sexualidade."

Se alguém falava antes do prazer e do gozo na literatura, era um homem ou outro. Hoje ela percebe as escritoras mais livres para fazer isso, inclusive fugindo da heterossexualidade padrão. Essa liberdade tem contaminado Evaristo, que completou 76 anos na semana passada.

O sujeito negro, lembra a escritora e doutora em literatura comparada, sempre foi visto como um corpo sexualizado. Não é sua intenção, nem de longe, repetir esse estereótipo. "Quero tratar desse corpo que não é só sexualidade, mas que também é."

"Gosto de uma linguagem insinuada, de dizer as coisas por reticências. Isso não é por acanhamento, mas porque é bonito. Quero que a pessoa leia, depois volte e entenda."

Agora a mineira está trabalhando num livro de poemas mergulhados nessa latência, mas que não quer chamar de eróticos. Esta palavra, segundo ela, remete à Grécia Antiga e ela quer encontrar uma expressão que tome como referência as culturas africanas.

É dessas raízes, afinal, que floresce a literatura da autora desde sempre, remontando a seus textos pioneiros editados nos Cadernos Negros, publicação do coletivo Quilombhoje na década de 1990. Já ali se notava a oralidade como ferramenta primeira da criação —a tradição negra no Brasil, vale lembrar, sempre valorizou a fala como meio de manter viva a memória.

Hoje Evaristo é leitura recomendada em escolas por todo o país, mas já era amplamente conhecida em saraus antes de vencer o Jabuti pelo livro de contos "Olhos d’Água", há sete anos, e de ter uma participação estrondosa na Flip de 2017, um ano depois de assinar uma carta aberta que acusava o evento literário de ser um "arraiá da branquitude".

Ainda há, mesmo hoje, quem discrimine a literatura produzida por pessoas negras como mera manifestação de identidade, desprovida de rebuscamento estético. Evaristo rebate comentários assim com uma comparação direta.

"Um autor ou autora branca pode usar, sem pedir licença, as culturas afro-brasileiras para construir suas ficções. Quando essa autoria é negra, já há uma interrogação, acham que estamos partindo de um lugar comum, ou que o material não é literatura."

A pesquisadora diz já ter ouvido a autoria negra ser criticada por "só saber escrever memória". Mas lembra que grandes memorialistas brancos, como Pedro Nava, não deixaram de ser considerados autores canônicos por isso.

"Por que a memória do sujeito branco, ao ser usada no exercício literário, dá para ele um status de escritor? E, quando se trata de nós, não temos esse status e é só memória?"

Além disso, há que se ressaltar a pluralidade da produção ficcional de autores negros como um método flagrante de desbancar essas interpretações reducionistas —para não dizer racistas. Para encontrar provas concretas, não precisa nem ir além de "Canção para Ninar Menino Grande".

Ao encerrar o livro, a narradora de Evaristo reafirma seu caráter de colagem de relatos chegados a ela por diversas mulheres. "Todas nós estamos sós", escreve. "Mas a nossa confraria não nos deixa sentirmos sozinhas."

É uma elaboração literária sofisticada, ainda que pareça simples, que mistura vozes reais e imaginadas à voz da própria autora. "Só escrevo o que creio, vem daí a minha invenção", diz a autora, narradora, escutadora, contadora. "Pois a canção é minha também."

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