Multi(Versos)Fotos, paisagens, gentes e memórias escritas na poesia de Marco Jardim (@marcoajardim no Instagram)
Desde o musim, com ventos soprando ventos sinuosamente para o norte, meu olhar cerrado se assentou no mar de um deserto interior.
À meia altura desta imensidão, do éden e toda a sua profunda dimensão, de alma recompensada, abri as persianas de madeira talhada, madeira da lua, e, então, eu o vi.
Um caminhante branco sentado na terra, lobo-cordeiro de espontaneidade natural.
Seus olhos, meio puxados, contornados de henna, pareciam um mapa.
Eu que dialogo com mapas, escutei, de longe, seu verbo, sua voz, sua humanidade.
Aquelas palavras, ditas em pensamento, formavam um pomar, com uvas das vinhas de Ein Gedi, com romãs, damascos, frutos do Chipre e nardos-da-Índia.
Eu não via um homem assim desde as últimas monções, entre as chuvas e a seca, entre as reminiscências, a serra e as orações.
Seu rosto, barbado, afilado, médio-oriental, desenhava metade do mundo conhecido.
De seu primeiro nome tatuado no olhar: aquele que trabalha com a terra, a luz do Pai, homem com ideias abundantes.
De sua alcunha, árabe: o louvado, o agradecido.
Revestido em turbante shemagh, um lenço palestino, torcido como saliências do delta do Nilo ou de Rovuma, era, sem dúvida, um peregrino.
Um móbile, um pedaço livre da eternidade, coberto por uma túnica kanzu e um saruni cor de sol do fim da tarde.
Ao longe, diretamente sob suas plácidas vistas, uma criança sorria para ele, tocando o sino do minarete.
Mãe e filha passavam por ali, caminhando de mãos dadas ao longo de uma sacada amarela, e ele as vestia de primavera.
Eu diria que seus sons, entonados de uma ocarina, passeavam do Chifre até a Península Árabe, atravessando o Mar Vermelho e o da Galileia.
Um homem de gestos suaves, como uma neblina de amanhecer, uma declaração ao tempo.
"Mohammed", apresentou-se a mim, com um sorriso que parecia um sinal em céu azul-noturno.
Emanava um perfume raro, de Ud-al-qamari, de incenso no queimador.
Afirmou vir de águas doces, um mercador de estrelas e pastor de gentes.
Disse que já caminhou bastante, do Golfo ao Bahrein, de Sind ao Egito, até a rosa mística de Nazaré.
Havia alguma coisa de persa nele, como um mar impenetrável, de estranhos nevoeiros.
Contou histórias belas e complexas, recordou o deserto, o ouro depurado, as vidas pregressas.
Sim, ele tem mais de uma vida, uma aqui, outras distantes.
Ele, traçado de luz, como aquela que atravessa o mourisco corredor.
De um pequeno estojo de madeira dos khmers, soprou mirra, âmbar, sândalo, amor.
Quanto mais eu o observava, mais parecia surgir, em torno de si, um mosaico de azzelij, com pequenas pedras polidas e desenhos contando parábolas antigas.
Antiguidades e raridades - devaneios e quimeras, diriam os incrédulos - ele trazia.
Um pequeno banco de ébano feito em Trivandrum, argolas nos lóbulos, joias e adornos de rosto, um amuleto translúcido, estanho e especiaria, infinito e calmaria.
Recordou o Jardim dos Milagres, as conversas amenas em Cafarnaum e o gosto do pão sírio.
Pediu-me chá de anis e goma aromática, pediu-me com língua enfática.
Queria eu dizer a ele que há tanto tempo o espero, que gostaria de tocar o seu rosto, ungir os seus pés e ler seus pensamentos, desde lá da esquina onde desapareceram os homens.
Desde as coisas esquecidas no escuro do ermo onde outros sumirão.
Tamanho o esplendor daquele jovem e belo homem, daquele messianato, que vislumbrei, em sua companhia, uma madrugada à beira-mar.
Um paraíso com sensibilidades, um bahr imperturbável e inteiro de boas novas verdades.
Fechei os olhos, tecendo coragem.
Quando os abri, debruçado nos marcos da janela do mundo, Mohammed não mais estava ali.
Nada além de pegadas na areia, histórias cruzadas, aroma, miragem.
No banco vazio, um pedido de perdão: "Aghfir li".
(de Marco Jardim para Yure)