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Escuta

O concurso para professor da Uesb e a escuta essencial

O dia em que abusei dos meus pitéus vernáculos

Mafuá de Malungo

Mafuá de MalungoContos, crônicas e memórias de Elton Becker.

02/07/2022 11h41
Por: Redação

Hoje tanto se fala em escuta e há inúmeros estudos e pesquisas sobre “escuta essencial”, “escuta global” e, até mesmo, “escuta em u”. Esta última noção é fruto de um estudo desenvolvido no Massachusetts Institute of Technology, nos Estados Unidos, e que propõe escutar em níveis mais profundos dentro de um modelo semicircular, daí a escuta em “u”.

Mas, eu me pergunto: se se fala tanto em escutar é por que não estamos mais à escuta?

Em semelhante questão sobre silêncio versus ruído, um amigo meu sociólogo fez certa vez um trocadilho admirável. Dizia ele que nossos dias são tão barulhentos e tão repletos de música por todos os lados que, qualquer hora dessas, vamos entrar numa sala de concerto e clamar: silêncio, maestro!

Tenho pensado bastante nisto: escuta e silêncio. Sobretudo porque prestei (sem sucesso e sem problema algum por este fracasso, sublinho) o concurso público de provas e títulos para professor da Uesb.

Mas antes de falar do que aconteceu e também porque eu não sei qual é a familiaridade do leitor no assunto, deixe-me explicar o processo e fazer um recuo na minha narrativa. Habitualmente, um concurso desta natureza requer pelo menos três avaliações: a escrita, a didática e a de titularidade.

A primeira prova é uma dissertação, enquanto que a segunda é uma aula; mas ambas versam sobre um assunto sorteado a partir de um conjunto de temas ou pontos e de referências bibliográficas, tudo previamente sugerido em um edital público.

A terceira prova, a de titularidade, tem o objetivo de avaliar a caminhada acadêmica e profissional do candidato. Se tem livros e artigos publicados, se já se apresentou em eventos, se já ministrou aula, se já atuou em gestão universitária ou escolar; enfim seus títulos, seus predicados na área pretendida.

Entretanto, para se avançar de uma etapa à outra é preciso ser aprovado na fase anterior com nota igual ou superior a 7,0 (sete). E é claro que quase todas as regras estão estabelecidas no edital, porque há questões que podem e serão decididas pela Banca Examinadora, uma junta de professores constituída para conduzir o processo e avaliar os candidatos.

Isto posto, digo que a primeira prova, a escrita, foi sofrível pra mim. Uma verdadeira maratona, uma fadiga enorme, um esforço aturado em uma cadeira nada confortável e mais de cinco horas de labuta. Horas e horas a fio de papel e caneta para alguém habituado ao teclado e à tela.

Por outro lado e pensando naquilo que a psicologia chama de “rapport”, nada poderia ser mais cômico. Vou desenrolar as curiosidades por este último ponto.

Rapport vem do francês e quer dizer desde uma apresentação detalhada até a ligação entre pessoas e coisas, mas é como sinônimo de relacionamento que a palavra se tornou mais usada; neste sentido, ganhou força na psicologia como técnica profissional de criar uma ligação de empatia e de criar ambientações e atmosferas satisfatórias para se realizar alguma tarefa: um teste psicológico, uma prova, por exemplo.

Todavia, as condições ambientais da nossa prova foram as mais distantes desta noção, porque nos puseram em uma sala vizinha a um canteiro de obra. Naturalmente com todos os barulhos de ferramentas (serras, martelos, esmerilhadeiras, talhadeiras, picaretas, carrinhos de mão, etc.) e o divertimento de operários cantando os hits mais recentes. 

E eu nem vou falar aqui de todos aqueles informes próprios da chamada “rádio-peão” que, entre uma consulta e outra aos nossos textos, nos atualizava de todos os enredos e burburinhos da obra. E eu ali, tentando manter o foco no meio do estrépito.

Das músicas não me lembro de todas, evidentemente. Ainda assim houve uma muito popular entre os peões, a qual não me sai da cabeça até hoje, que fala de alguém disposta a fazer tudo aquilo que o outro queira desde que não vá para a cozinha, e repisa que não cozinha e não cozinha de gente nenhum.

O refrão é desses grudentos e que se torna mais grave quando a gente está entediado e inativo por uns momentos.

Mas falando agora das confusões de antes mesmo de começarmos a escritura, estas me fizeram lembrar um tweet do Fabrício Carpinejar em que ele escreve que ouvir com atenção hoje em dia é a maior homenagem que se pode fazer a uma pessoa.

Observe aí que “ouvir com atenção” é semelhante a uma redundância, afinal ouvir é dar atenção ou audiência; porém aí está mais para uma figura de sintaxe em que se quer obter maior expressividade e que é bem próprio aos nossos tempos, de palavras loucas e ouvidos moucos.

Ao todo, no concurso, foram quase 60 candidatos ao cargo divididos em duas salas de aula. E tão logo a banca de professoras se postou e disse as primeiras instruções, as mesmas do edital que regia o concurso aliás, aconteceram situações que beiravam a ensurdecência.

Inicialmente, a presidente da banca informou a duração da prova: seriam cinco horas no total, sendo permitida a consulta de materiais impressos na primeira hora. No entanto, nas quatro horas seguintes (para redação do tema sorteado) não seria permitido acesso a nenhum material — nem mesmo àquelas eventuais anotações feitas no momento da consulta.

Foi o bastante, pois na sequência, vieram uma série de perguntas estupefacientes; como: 

— “A prova vai durar quantas horas?”.

— “Quanto tempo a gente vai ter pra escrever?”.

— “São cinco horas de prova, né? Se começar agora, às 8h50, termina que horas?”.

— “A gente pode usar o que anotou durante a consulta para fazer a prova?”.

Demais, o famigerado edital, e sempre ele, previa que os candidatos aprovados na prova escrita deveriam comparecer em dia, horário e local determinados pela banca para o sorteio que iria definir a sequência do concurso, ou seja, quando seria a prova didática, a aula. Que tirania!

Em seguida, houve quase uma diatribe sobre a desumanidade da postura da banca em relação à divulgação do resultado, pois como notou o Mário Prata em uma crônica célebre, a prerrogativa de toda banca é botar banca. 

No entanto não era o caso. As três professoras não eram lá tão circunspectas, sisudas, tampouco compenetradas em si mesmas, como as do texto do Mário. Ao contrário, uma das coisas que notei é que mesmo nos momentos mais dramáticos elas sequer levantaram o tom de voz.

Desta hora, as melhores perguntas que me lembro foram:

— “Quem determinou isso [comparecer quando e como a banca definisse]?”.

— “Não dá pra ser por procuração, não? Procuração com firma reconhecida em cartório, pode não? Isso é desumano, sabia?”

Neste momento, uma jovem que estava ao meu lado pensou alto, inadvertidamente: “Meu Deus do céu, gente, está tudo lá no edital”. E dezenas de graves olhares de reprovação se fitaram sobre ela, olhos esbugalhados de pipoca explodindo sobre a moça e mais umas palavrinhas de carinho, tipo: “Qual é a sua, minha filha?”.

Aí chegou a minha vez, não me contive. E, diante de tudo que estava acontecendo, diante de atmosfera tão airosa e tão próxima à educação básica, lasquei um colegial bem castiço, abusei dos meus pitéus vernáculos num atropelo certeiro: A prova pode ser em dupla? Pode fazer a lápis?

Uma pessoa que estava logo a minha frente não entendeu a piada e resolveu me dar uma aula, misto de reprimenda, sobre o quadro de vagas o qual previa apenas uma entrada. Se fosse alguém com o excelente tirocínio do meu ex-professor Belarmino de Jesus Souza responderia: “Sim, em dupla: você e Deus”.

Ao sair dali fiquei pensando em escrever esse texto e também em ler um pouco mais sobre escuta. Afinal falar é despender, escutar é adquirir; diz o provérbio. Porém, como aquele refrão chiclete, surgiu no meu ouvido uma vozinha lá do passado, principalmente das aulas de Física e Matemática lá dos tempos em que era colegial e estudava no CIENB: “Pra que aprender isso se eu nunca vou usar na vida?”…

— Dedico este texto aos meus ex-alunos Andiara Martins Dias e Kleber Santos Chaves. Eu que sempre fico ababosado (como diria minha mãe) quando sou avaliado, encontrei neles o refúgio, o esteio para acalmar dos nervos… que eu sempre fico ansiosíssimo em provas.

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