Conversa de BalcãoDicas, críticas e curiosidades culturais - para beber, beliscar e jogar conversa fora.
“Associo o teu cárcere político à sublime 'ausência de mãe à mesa' porque sinto tua paciência, tua sabedoria em aceitar sem odiar os teus algozes da mesma forma que mãe renunciava o direito de se alimentar sem desespero ou revolta. Eu, aquele Zé Ninguém, o famoso 'Zé Roela' lá do interior, teve oportunidade de comprar um apartamento pelo MCMV. (…) Obrigado Lula, por existir e provar que um torneiro mecânico e uma mulher podem sim chegar lá e fazerem a diferença. Isso nos motiva a lutar. As sementes plantadas por vocês são como rama de batatas ao solo, uma vez plantadas nunca mais conseguiremos elimina-las, elas sempre renascem”.
Esse é o trecho da carta do potiguar Lucas Ribeiro, que foi uma das milhares de pessoas que enviaram cartas ao presidente Lula, enquanto estava preso. De uma família de 18 irmãos, dos quais 11 morreram entre oito meses e dois anos de idade por desnutrição infantil, Lucas participou do ato no Teatro Tuca, em São Paulo, para lançamento do livro “Querido Lula - cartas a um presidente na prisão“, organizado pela francesa Maud Chirio e editado pela Boitempo, a obra reúne parte das milhares de cartas que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu enquanto esteve preso injustamente por 580 dias em Curitiba.
As cartas, um grande afago a Lula e a todos que se indignaram com a prisão política, cujo objetivo foi tirar o ex-presidente da disputa eleitoral de 2018, são em conjunto um grande reconhecimento às realizações dos governos Lula e do PT.
Todos os missivistas reconhecem o papel fundamental dessas gestões para a inclusão social no Brasil. A maioria registra histórias pessoais de beneficiados por diferentes programas como Bolsa Família, Prouni, Fies, Minha Casa, Minha Vida, Pronaf e outros.
De 7 de abril de 2018 a 8 de novembro de 2019, o ex-presidente Lula ficou encarcerado na Superintendência da Polícia Federal de Curitiba. Foram 580 dias de cárcere, que marcaram definitivamente o rumo da história pessoal de Lula e também do Brasil: enquanto o país elegia um representante da extrema direita, um acampamento em frente à prisão se formou, organizações nacionais e internacionais lutavam na arena jurídica para reverter as injustas condenações, e milhares de brasileiros e brasileiras se solidarizaram com a situação do ex-presidente, seja por manifestações via internet ou pelo meio de comunicação mais antigo entre nós, as cartas.
Durante esse período, aproximadamente 25 mil cartas foram endereçadas a Lula. Um impressionante acervo, ao qual se soma o envio também de objetos variados como livros, revistas sobre futebol, poemas e cordéis, Bíblias, fotografias, desenhos, roupas e cobertores para evitar o frio (alguns tecidos pelas próprias remetentes), bordados e gravuras, estatuetas de divindades de todas as religiões, flores secas e outros materiais decorativos. Em Querido Lula: cartas a um presidente na prisão, é possível ter acesso a 46 missivas selecionadas pelos organizadores, bem como a um cuidadoso caderno de imagens com fotografias das cartas e dos objetos enviados.
Diferente de outras obras de estadistas encarcerados, que reúnem parte de sua comunicação com o mundo exterior, as cartas a Lula apresentam a visão daqueles que viram de longe o desenrolar da história. São demonstrações de solidariedade, de amor e esperança ao prisioneiro. Atos de pura doação do interlocutor: “A carta, na esmagadora maioria das vezes, é fruto de um esforço intelectual e artesanal que não mira o abstrato de uma legião de pessoas. Seu foco é um único coração, que precisa não somente daquela informação naquele momento, mas, além disso, precisa daquela manifestação. Uma carta é uma maneira de se fazer presente, diria Foucault. Um gesto simbólico, ilustrando que entre os dois extremos envolvidos, missivista e destinatário, não existe distância, ou ainda que ela pode até existir, mas não é suficiente para separá-los”, comenta o artista Emicida no prefácio da obra.
Trecho:
“A partir de 2003, comecei a ver seu poder de transformação. Paulatinamente, vi a miséria no meu Estado regredir, vi diminuir o número de pedintes nas ruas, vi o pobre ter acesso a curso superior, vi gente comemorando a chegada de energia elétrica em sua casa, vi o pobre descortinar seus horizontes, pegando um avião e descobrindo que o mundo a ele também pertencia. Vi direitos assegurados a nossas domésticas, que de nossas casas tiveram a feliz oportunidade de sair com seus diplomas em mãos. E vi que pra isso tudo, minha vida não tinha piorado. Pelo contrário, só melhorou. Daí que ainda não consigo compreender a raiva que a maioria das pessoas pertencentes a minha classe sente por conta de tais conquistas”. – Ana Carolina, Teresina, 13 de abril de 2018.