Mafuá de MalungoContos, crônicas e memórias de Elton Becker.
A primeira vez em que tratei com alguma seriedade sobre envelhecer foi logo depois da leitura do romance “Memórias de Minhas Putas Tristes”, de Gabriel García Márquez, publicado em 2005. Por este tempo, entabulei intensas conversas com meu amigo sociólogo Paulo Cézar Cerqueira Lisboa sobre os sinais que o tempo vai imprimindo em nosso corpo e, claro, sobre a literatura de “Gabo”. Cézar é particularmente aficionado por “Crônica de Uma Morte Anunciada”, eu, por “Amor Nos Tempos do Cólera”, e ambos de dois somos doidos por “Cem Anos de Solidão”.
A forma pleonástica aí é para conferir mais amor àquele livro, já que a saga dos Buendía-Iguarán nos arrebata o nosso melhor bocado.
Contudo, sem me deter nas polêmicas que circundam aquele livro “Memórias de Minhas Putas Tristes” — o qual desagradou desde movimentos feministas até grupos anti-prostituição, que intentaram impedir as filmagens da adaptação da obra ao cinema por suposta promoção da pedofilia —, vou me ater tão somente à narrativa.
“Memórias de Minhas Putas Tristes” é baseado na obra de Yasunari Kawabata, “A Casa das Belas Adormecidas”, e também se refere à fábula de Charles Perrault, “A Bela Adormecida”; assim, de forma tão engenhosa, o livro vai expondo minuciosamente a história de um ancião de 90 anos que resolve dar a si mesmo uma noite de amor louco com uma adolescente virgem como presente de aniversário.
A partir deste mote, Gabo vai esmiuçando para o leitor a trajetória de um velho jornalista embotado e embrutecido, escritor de resenhas literárias, professor de gramática para alunos tão sem horizontes quanto ele e, enfim, um ancião que vive a vagar de bordel em bordel com pouco mais ou menos desdém do amor e da própria humanidade.
Então, no tempo em que acompanhávamos os passos de déu em déu do narrador-personagem, eu e meu amigo Cézar íamos notando o nosso próprio “tornar-se velho”. Tal como aquela famosa canção sobre a velhice (Safo), agora falávamos sobre rugas, cabelos brancos e peso dos joelhos, hoje, 17 anos depois, ainda mais quedos de cansaços.
Ocorre que, por pelo menos 3 motivos, me apanho pensando novamente em tudo isto atualmente.
Primeiro porque, chegando aos 50 anos, é provável que eu tenha vivido mais do que viverei. Afinal, olhando as estatísticas demográficas, percebe-se que há, no Brasil, pouquíssimos centenários (30 mil) e, por outro lado, há mais de 1,4 milhão de brasileiros demenciados. Nosso país é o segundo do mundo em prevalência de demência. Ou seja, caso eu atinja os 100 anos, posso não chegar lá em perfeito estado mental. Logo eu, sempre chegado nalguma parvoíce!
O segundo motivo de estar pensando em velhice é que estou vendo que a roda da vida de meus pais com suas idades avançadas vai perdendo seu eixo, seu centro — são dois velhos na dança final da vida. Uma agitação constante me assalta toda vez que vejo no meu telefone celular o número lá de casa chamando. E confesso minha culpa, minha tão grande culpa, que é dificílimo manter aquela paciência tranquila de antes. Especialmente, quando à 1h00 da madrugada, meu irmão me liga e pede socorro, bradando: “venha pra cá que painho está morrendo”.
Era nosso pai que tinha se entalado com uma espinha de bacalhau desde o meio-dia e somente àquela hora resolveu informar que sofria. Felizmente, tudo se resolveu.
A terceira e última causa desta pensação toda vem das histórias que me chegam sobre abandono e violência. Acontecimentos que mais parecem ter ganhado vida ou brotado de algum texto de Clarice Lispector — que, até onde sei, foi a escritora que mais tematizou a velhice, seja em contos, seja em crônicas.
A título de exemplo, em 8 de dezembro de 1973, Clarice Lispector publicou, no Caderno 2 do Jornal do Brasil, uma crônica intitulada de “Dureza Necessária”, para refletir sobre quatro velhas, descritas ao longo do seu percurso como escritora, e sobre as situações difíceis que tais personagens experimentam. Crônica, aliás, que não se encontra na coletânea “Para Não Esquecer”, de 1978, menos se acha em “A Descoberta do Mundo”, de 1984, e tampouco está lá em “Todas as Crônicas”, de 2018.
Pois bem, “Dureza Necessária” é sobre a velhice, sobre abandono e desdém, desestima e violência contra idosos. Problemas que ainda não foram superados e, frente ao que se vê no Brasil de hoje, quase 50 anos depois, Clarice Lispector tem toda razão ao dizer que o problema da velhice não foi ainda resolvido pelos humanos.
Até agora, a velhice segue repleta de situações difíceis, embaraçosas, pela perplexidade, pela vergonha. E, diante desta enumeração não solvida, vou lendo/relendo algumas expressões sutilíssimas de algumas senhoras de Clarice. Expressões tão sutis quanto às da senhora do trem, apenas uma senhorinha abandonada em um vagão, unicamente uma velha senhora sem nome próprio, de batismo ou de família, e sem ninguém.
Uma outra senhora está lá no conto “Feliz Aniversário” — que é chamada por velha pela autora e por alguns de vovó, porém uma vizinha a chama de Dona Anita e outros sequer pronunciam seu nome. A velha de “Viagem a Petrópolis”, chama-se Margarida, tem o apelido de Mocinha, mas não tem voz nem vez. Outra velha, de “A Procura de uma Dignidade”, tem o nome pomposo de Sra. Jorge B. Xavier, mas não tem identidade própria.
Todavia, para além da ausência de um nome ou de uma identidade particular, há os laços de família, há o conflito geracional. E, tal como Ivan Turguêniev em obra clássica, Clarice não esquiva os leitores de se posicionarem, concomitantemente, ora como pais, ora como filhos, diante dos problemas da nossa época — em que até a Natureza parece estar exausta do trabalho que nunca termina e, dessa forma, quiçá repita ideias antigas.
Problema maior é que não estamos preparados para mudar de lugar nesta relação, aceitar que nossos pais envelheceram e estão repletos de todos os cansaços; tantos cansaços, fadigas e moléstias quanto a vida pode dar. E aqui três perguntas se nos impõem com força e energia moral: como é que a gente aprende a lidar com o envelhecimento dos nossos pais? Como lidar com a perda do vigor, da memória, da audição, ou com as repetições constantes como se fosse a primeira vez? E o que fazer com a teimosia pertinaz e torturante, continuamente?
É estranho; no entanto, estas perguntas me fazem lembrar o poema “A Velhice Pede Desculpas”, de Cecília Meireles, cujo primeiro verso é uma súplica de perdão e um lamento lírico-dramático sobre as ausências da idade avançada: “Desculpai-me não ser bem eu: / mas um fantasma de tudo… / Desculpai-me viver ainda”. Uma escusação que me leva à história de Dona I.
Outro dia presenciei uma mudança no prédio onde moro, avancei para a porta por onde os móveis eram retirados e perguntei: “Dona I. está de mudança?”. Não, me disseram. E o que se seguiu foi a mesma confabulação que se lê no conto “Viagem a Petrópolis”, o mesmo ar de fastio que se vê na casa do personagem Arnaldo.
Segundo contaram, a filha de Dona I. obteve na justiça a interdição judicial da mãe e, pelo zelo necessário (sic), requereu a sua curatela e a consequente internação em um asilo na cidade de Florianópolis. Não é escusado pontuar que Dona I. morava sozinha e ocasionalmente recebia a visita de um neto. Todavia, nós, os vizinhos e mais os servidores do condomínio, revezávamos em cuidados com ela.
Além disto, senhoras de uma paróquia próxima eram frequentes em seu apartamento, comemoravam seus aniversários e a levavam para as celebrações na igreja. Enfim, todos tentavam, de acordo com suas condições e possibilidades, não a deixar de fora ou não a deixar para lá.
Penso que a história de Dona I. corrobora a ideia de Clarice Lispector de que o problema da velhice não foi resolvido. Novamente, é raro se ver uma pessoa idosa com harmonia interna e com vida externa correspondente, como escreveu Clarice ainda na década de 1970, acrescentando que, materialmente, “muito se poderia fazer pelas pessoas idosas, dando-lhes o conforto possível, deixando-as serem úteis, não as afastando como a um ser de outra espécie” (lá para o ermo e afastado asilo em Florianópolis, em Santa Catarina, por exemplo).
Decerto, não estamos prontos para sermos pais dos nossos pais. Talvez nem seja este o horizonte. Até porque os nossos pais sempre nos veem como crianças grandes, como me lembrou o amigo advogado Kleber Monteiro Braga. Entretanto, é preciso deixar que eles envelheçam sem que a gente, os filhos, envileça. Se aqui já não se morre de velhice, nem de acidente ou de doença, mas de indiferença, seria de bom alvitre lembrar-se de que não é possível, sendo humano, ser desprovido de velhice. É uma dureza escrever isto (semelhante ao que fizeram Gabo, Clarice e Cecília), entretanto é muito necessário.
— Para Dona Nini Marques, pela passagem dos seus 79 anos, comemorados no último dia 8 de abril, e porque ela é de algum modo a mãe de todos nós. Para Seu Dória e Dona Bel: ele, o gerente de banco mais humano que conheci; ela me deu uma reprimenda tão calorosa um dia que roubou meu coração. Para Daniella Miranda e Gilena Honda, porque compartilharam comigo histórias maravilhosas de suas avós.