Moviola DigitalCríticas cinematográficas, por Rafael Carvalho, pesquisador de cinema e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine).
O cinema do diretor italiano Paolo Sorrentino sempre esteve inclinado ao exagero e às excentricidades, tanto dos personagens como da mise-en-scène elaborada do cineasta – por vezes, recheada de firulas demais. Seu novo filme, A Mão de Deus, revela essa mesma tendência, tem os seus arroubos de estranheza, mas possui um tom tão mais afetuoso e menos cínico, que o resultado final é muito mais cativante do que qualquer um de seus filmes anteriores.
Grande parte desse feito se deve ao tom autobiográfico que permeia o filme, centrado na juventude do introvertido Fabietto (Filipo Scotti). A Mão de Deus foi exibido no último festival de Veneza, de onde saiu com o Grande Prêmio do Júri. O protagonista também recebeu um prêmio para jovens atores promissores. A produção chega agora à Netflix, depois de ter sido exibida em algumas salas de cinema.
O filme retorna à Nápoles dos anos 1980 quando Fabietto vivia com a família – aquela grande família italiana, cada membro com suas manias e bizarrices. Ao lado do pai (Toni Servillo, grande ator e colaborador de longa data de Sorrentino), da mãe (Teresa Saponangelo), que tem mania de pregar peças nas pessoas, do irmão mais velho Marchino (Marlon Joubert) e de uma irmã que passa o tempo inteiro dentro de um banheiro, além de rodeado por uma série de parentes e vizinhos excêntricos, Fabietto vive as descobertas e sonhos da juventude entre choros e risos.
O cineasta filma a cidade de Nápoles com muita paixão e verdadeiro sentimento de afeto e pertencimento. A sua Nápoles não é aquela conhecida pela violência e decadência, nem pela máfia (marcada pela presença da organização criminosa local Camorra, tema do filme Gomorra, de Matteo Garrone) ou pelo tráfico de drogas – muito embora Fabietto fará amizade com um jovem envolvido em negócios criminosos e ilegais. Mas mesmo esse personagem é retrato com carinho pelo diretor.
É certo que essa ambientação é influenciada pela memória e pela nostalgia do cineasta, a resgatar histórias e buscar inspiração nos anos em que viveu ali – Sorrentino não só nasceu em Nápoles, como ali residiu até os seus 37 anos. Na própria Netflix, há um curta documental em que o cineasta relembra esse período e algumas das influências napolitanas que acabaram compondo o filme.
A mão de Maradona
O futebol é uma presença constante na vida do protagonista e de toda a sociedade italiana da época. Mais especificamente, o status de astro que o jogador Diego Maradona gozava entre os italianos já era enorme, o que cresce exponencialmente quando o boleiro assina contrato para jogar no time do Napoli. Fabietto e toda a família vibram com a notícia e passam a acompanhar com brilho nos olhos os jogos com o craque no seu time do coração.
Mais uma vez é o imaginário juvenil que toma de assalto o filme. A paixão por Maradona é incontestável em tela, já que o próprio filme é dedicado a ele logo no início. Sorrentino tem uma lembrança viva desses momentos e chegou a dizer que a presença de Maradona tem algo de divino – ele não teria chegado em Nápoles, mas sim aparecido lá.
O filme apresenta até mesmo um bom material de arquivo com alguns jogos e jogadas do craque, em especial o lendário gol que Maradona fez com o punho – jogando a Copa do Mundo de 1986, defendo sua Argentina natal, algo que o filme desconsidera. O lance, que passou a ser conhecido como “a mão de Deus”, é a evidente referência para o título do filme de Sorrentino.
Mas o caminho da alegria segue próximo ao da tristeza. Um determinado episódio fatal por pouco não vitima Fabietto, se ele não tivesse recusado uma viagem, pois queria ir ver seu ídolo jogar no estádio local. Mas a tragédia não deixa de se abater sobre a família. Mais uma vez, é a força do destino, a mão de Deus que atravessa a vida do personagem.
Cineasta em formação
Esse exercício de compreensão das paixões ambienta o espectador do filme em um universo muito rico de formação do protagonista. E apesar do futebol ser uma constante em sua vida, é o caminho da arte do cinema que ele vai seguir. Na verdade, Fabietto vai demorar para se interessar por cinema, mas a sétima arte está presente na sua vida.
Dos filmes vistos em casa, pelo videocassete, junto com toda a família (como o clássico Era uma Vez na América (1984), do mestre italiano Sergio Leone, sobre uma família de italianos que se firma nos estados Unidos, e cuja fita de vídeo está sempre rodando em casa), até o próprio imaginário de cinema italiano, que era muito forte à época, o longa também apresenta as suas referências cinematográficas.
Há citações ao diretor Franco Zeffirelli e seu projeto sobre a cantora lírica Maria Callas. E é o irmão Marchino, na verdade, quem está mais atraído pelo cinema de início e chega a fazer testes com um certo grande cineasta da época – Federico Fellini, que buscava formar provavelmente o elenco do seu Cidade das Mulheres (1980). A presença felliniana se faz não apenas nessa aparição rápida, mas também no próprio tráfego de atraentes e exuberantes mulheres pelo filme – com destaque para a tia Patrizia (Luisa Ranieri), amor platônico de Fabietto.
Mas o filme aponta, sobretudo, para Amarcord (1973), uma vez que A Mão de Deus pode ser tido como o projeto de rememoração juvenil de Sorrentino, ambos filmes em que os cineastas resgatam sua infância e juventude, fabulam um pouco em cima disso, reelaboram realidade, ficção e memória. Sorrentino já havia se aproximado do mestre italiano em A Grande Beleza, filme muito associado a A Doce Vida (1960), que bem poderia ser o título aqui.
Mas os arcos de (trans)formação do protagonista são muito mais pessoais e menos cínicos no novo filme. É difícil precisar o quanto há de influência na vida real do cineasta e o quanto é inventado. Mas o certo é que A Mão de Deus apresenta uma faceta mais melancólica e amorosa do cineasta, além de apontar para a sua vocação como contador de histórias, via cinema e com uma mãozinha não de deus, mas sim das puras recordações.
A Mão de Deus (È Stata la Mano di Dio, Itália/EUA, 2021)
Direção: Paolo Sorrentino
Roteiro: Paolo Sorrentino
*Publicado originalmente no jornal A Tarde (edição de 23/12/2021)